segunda-feira, 1 de abril de 2013


A Igreja Matriz de Torre de Dona Chama


Nos casarios rurais transmontanos, as Igrejas denunciam a primazia do sagrado sobre o profano, sobressaindo na paisagem como manifestação da religiosidade de um povo.


Foto “Portugal – Luz e Sombra” – 1958


A percursora Capela de São Brás

A história da actual Igreja Matriz de Torre de Dona Chama está interligada com a deslocação da própria povoação, desde o Castro de São Brás até à actual localização.


  Actual Igreja Matriz - Vista São Brás - Foto autor


Sabemos pelas Memórias Paroquiais que, pelo menos até 1758, a também já designada Igreja de São Brás era ainda a Igreja Matriz da Torre de Dona Chama, sendo certo que, por essa altura, já havia sido construída a actual Igreja Matriz:

Esta igreja hé muito anticuissima, já do tempo em que esta villa da Torre de Dona Chama estava assente naquelle sítio, por isso ficou sendo esta a matriz. E o depois se veio a villa mudando abaixo ao val e planície donde está, aonde os moradores mandaram fazer huma igreja para a administraçam dos sacramentos, por rezam da matriz lhe ficar muito muito desconveniente pela distancia e aspereza do sitio e caminho…”.


 Capela São Brás - Vista lateral - Foto SIPA – 1958


Do mesmo dá conta, Alexandre Rodrigues (De Miranda a Bragança: arquitectura religiosa de função paroquial na época moderna):

Pelas incomodidades e prejuízos resultantes, nos finais do século XVII e durante a primeira metade do século XVIII, verificar-se-á a tendência para a deslocação para o centro das aldeias das igrejas paroquiais, a que se seguia, depois de observadas algumas normas, o abandono da antiga igreja”.
(…) em Torre de D. Chama, o povo usava a igreja existente no aglomerado e munia-se das licenças eclesiásticas para apenas nas festividades se deslocar à afastada sede da paróquia”.


Actual Capela São Brás - Foto autor



No que respeita à percursora Igreja Matriz (actual Capela de São Brás), o clérigo informante das Memórias Paroquiais, descreveu-a assim:

Tem três altares, o altar-mor e dous coletares. O altar mor hê de Nossa Senhora da Encarnação, o altar da mão Direita hê de Sam Brás, adonde está hum Santo Cristo e o altar da mão Esquerda, hê de Santa Luzia. Tem somente duas naves, nam tem irmandades algumas”.


Capela São Brás - Retábulo-Mor - Foto SIPA


Com a (re)construção da actual matriz, a velha matriz acabou por ser deixada apenas à celebração do culto de São Brás, cuja festa se celebra no 1º Domingo de Fevereiro.


A construção da actual Igreja Matriz

Como dissemos, em 1758, data das Memórias Paroquiais, já existia a Igreja Matriz de Torre de Dona Chama, embora não necessariamente com toda a sua actual composição arquitectónica:

A igreja que está nesta villa hé de duas naves e com grandeza milhor que a matriz. Tem duas portas principaes e duas travessas de cada lado da igreja suas portas travessas. Tem as paredes de cantaria com o seu coro, tem dous altares coletrais, hum de Santa Anna e Sam Joaquim que hé da mam Esquerda, entre Santa Anna e Sam Joaquim está Nossa Senhora do Rosário ficando Santa Anna à mam Direita do altar e de Sam Joaquim. (…) No altar da mam Direita está hum Santo Christo Crucificado muito ao proprio, quasi do tamanho de hum homem. Tem esta igreja sua capella, muito mais alta que a igreja ou corpo da igreja por se reformar de novo, por conta dos moradores, com sua tribuna dourada, os altos e os baixos de varias tintas finas, o teto della está com muita perfeiçam, bem pintado, cornijada, da mesma madeira, posta em quadros, em cada hum deles e por todos estão pintados os Quatro Mistérios, com muita perfeiçam e outras mais pinturas bomas”.

Desta descrição extrai-se que, ao menos quanto à Capela-Mor, reformada de novo, a actual estrutura arquitectónica já existia em 1758, como também resulta da data de 1752, presente no painel de Santo Ambrósio do tecto da Capela-Mor.
Mas resulta também que o corpo da igreja era mais baixo que a Capela-Mor.
De igual modo, a ausência de qualquer referência à torre-sineira, na Memória de Torre de Dona Chama, faz supor que a mesma, tal como a actual fachada, seja de data posterior.

Em qualquer caso, sabemos, pelo processo respeitante ao lançamento das obras da igreja de Torre de D. Chama - Fonte: A.N.T.T., Desembargo do Paço, Repartição do Minho e Trás-os-Montes, Mç. 268, Cx. 346 -, citado por Alexandre Rodrigues (ob. cit.), que entre o final do Séc. XVIII, início do Séc. XIX, foi sendo finalizada a actual composição arquitectónica da Matriz de Torre de Dona Chama, que incluiu um aumento da volumetria de todo o corpo da igreja (altura incluída) e construção da sacristia.


 1971 - Foto SIPA


Em tal reconstrução teve papel decisivo o padre Manuel de Carvalho Carneiro, abade da Torre de D. Chama, S. Mamede de Guide e suas anexas.

De facto, em 1790, em petição dirigida à rainha D. Maria, o abade Carneiro referia que “as duas matrizes daquella villa, a mais antiga e principal somente durou hum anno [...] e cahio por terra, e a menos antiga, já com espeques inteiramente arruinada”.
Queixando-se de já ter suportado, à sua custa, a reedificação da matriz antiga (actual Capela de São Brás) e de lhe ser impossível custear as despesas da matriz situada na vila, propunha o lançamento de um imposto sobre o vinho vendido nas tabernas e sobre a carne cortada nos açougues da vila e do seu concelho.

Em 1794, o provedor da comarca de Moncorvo, Manuel António Pinto de Escovar (de que a Torre de Dona Chama dependia administrativamente), mandou arrematar em praça pública a obra de pedraria da matriz, “na forma dos apontamentos e risco” que se tinham mandado fazer.
João António, mestre canteiro de Alvites, chegou a arrematar a obra por setecentos mil réis, não tendo, contudo, ao que supomos, efectuado a obra, dado que, pouco tempo depois, se ordenava que a obra voltasse à praça.


Projecto fachada 1794 - Fonte Alexandre Rodrigues (ob. cit.)


Nesse sentido aponta o facto da fachada executada ser substancialmente diferente do projecto de 1794, o que nos remete, novamente, para a possibilidade da fachada só ter sido concluída em 1815, tal como consta da data nela aposta.


Arco do portal principal – Foto autor



Descrição da Matriz de Torre de Dona Chama

A Igreja Matriz de Torre de Dona Chama, ou Igreja de Paroquial de Nossa Senhora da Encarnação é um exemplar bem preservado da arquitectura religiosa, barroca, destinado ao culto católico paroquial.
Situado em posição sobranceira, numa área de pendente Norte/Sul, no centro de uma plataforma (adro) artificial, criada por muro de sustentação a Sul em cantaria de granito.


Adro – Foto autor


Arquitectonicamente apresenta-se segundo uma planta longitudinal e uma nave, com fachada-torre formando nártex (vestíbulo).


Vista Exterior – Foto autor


O frontispício, orientado a Oeste, é cantaria aparelhada, rematado com cornija e empena em aletas, sobrepujado por torre sineira quadrangular, colocada axialmente, com quatro vãos de arco pleno e rematada por cornija com balaustrada e coruchéu.
A fachada é dividida em 3 panos por pilastras que se prolongam superiormente nos cunhais da torre.
O portal principal axial termina em arco abatido e apresenta pilastras sustentando cornija encimada por pináculos e frontão curvo interrompido, com nicho no centro.
É encimado por óculo quadrilobado.


Frontispício – Foto autor


As fachadas laterais do edifício, com embasamento, são rematadas em cornija arquitravada, com porta de vão curvo e 2 janelas de verga recta.


Janela lateral – Foto autor


Adossada a Sul, à Capela-Mor, situa-se a Sacristia, de planta quadrangular, com duas frestas na fachada Sul e porta de verga recta no lado Este.


Sacristia – Foto autor


Sobre o cunhal Sudoeste sobressai um pequeno relógio de sol.



Pormenor relógio de sol – Foto autor


A fachada posterior, com nicho e empena, é coroada por uma cruz.


Fachada posterior – Foto autor


A organização do frontispício é condicionada pela torre que ocupa o eixo cardeal e se projecta no interior da planta da nave.
O primeiro dos arcos da torre alinha-se pelo pórtico de entrada, facto que acentua a longitudinalidade planimétrica do templo.
O arco do lado do evangelho inicia a arrumação da pia baptismal.



Pia baptismal – Foto autor


O arco do lado oposto inicia o caminho da caixa de escadas, em cantaria, que leva ao Coro-Alto e aos sinos.
A cobertura da torre é feita por um cónico zimbório, que se sobrepôs à opção inicial (ver projecto fachada de 1794) de uma cúpula bolbosa.


Sino – Foto autor


No alto das “sineiras”, onde, por vezes, com alguns excessos, muito se repicaram os sinos, em altura pascal, é visível a forma como a torre domina o casario circundante.


Vista torre-sineira – Foto autor


O restante arco da torre termina a antecâmara e coincide com a entrada no corpo principal da igreja, encimada pelo Coro-Alto, sustentado por um arco abatido, de apreciável execução arquitectónica, protegido com balaustrada de madeira.


Coro-Alto – Foto autor


O corpo da igreja é delimitado com paredes laterais simétricas tendo, de cada lado, 3 confessionários embutidos.


Confessionários do lado da epístola – Foto autor


De cada lado sobressai ainda um púlpito, protegido com balaustrada de madeira.



Púlpito do lado do evangelho – Foto autor


Como nota arquitectónica peculiar, talvez inspirada na arquitectura militar, sobressai o facto do acesso aos púlpitos se fazer em escada interior, recortada nas paredes do templo, o que também demonstra alguma monumentalidade das mesmas.



Escada de acesso ao púlpito – Foto autor


Caminhando na direcção da Capela-Mor, sobressaem dois altares laterais de talha, colocados de ângulo.
O do lado do Evangelho é dedicado a Nossa Senhora dos Remédios e o do lado da Epístola tem Cristo na Cruz.
A entrada na Capela-Mor é encimada por arco triunfal pleno, com pinturas murais sobre o arco e nas paredes laterais.


Vista Púlpito – Foto autor


No tecto da igreja, em abóbada de berço e em madeira pintada, destaca-se uma pintura da cena da Anunciação, datada de 1844.


Anunciação – Foto autor


O interior da Capela-Mor ostenta um riquíssimo retábulo-mor de estilo joanino, em talha dourada com colunas salomónicas, coroamento em baldaquino e trono central.
O sacrário e altares laterais apresentam-se coroados também por baldaquinos.
A decoração ostenta elementos fitomórficos, conchas, florões, putti e figuras humanas.



Retábulo-Mor – Foto-autor


O tecto da Capela-Mor, abobadado, é revestido de 24 caixotões pintados, respeitantes aos Mistérios do Rosário (Gozosos: Anunciação; Visitação; Nascimento; Apresentação no templo; Jesus no Templo entre Doutores; Dolorosos: Agonia no horto; Flagelação; Coroação de espinhos; Caminho do calvário; Crucificação; Gloriosos: Ressurreição; Ascensão; Pentecostes; Assunção de Nossa Senhora; Coroação da Senhora como rainha do céu), aos quatro evangelistas, aos quatro padres da igreja (Santo Ambrósio, Santo Agostinho, S. Tomás e S. Gregório) e à padroeira, a Senhora da Encarnação.


Tecto da Capela-Mor – Foto autor



Relevo patrimonial e turístico da Matriz de Torre de Dona Chama

A Matriz de Torre de Dona Chama não se encontra classificada, nem é objecto de qualquer zona de protecção.
Tal tem permitido que, ao longo dos tempos, tenha sido objecto de intervenções, mais ou menos voluntaristas, dos párocos residentes ou das comissões fabriqueiras, sem a necessária supervisão dos organismos estatais.
Aqui fica um exemplo de tais intervenções, datada dos anos noventa.


Fachada 1997 – Foto SIPA


Urgia que os poderes locais providenciassem pela sua classificação como imóvel de interesse público e pela criação da respectiva zona de protecção, premente pelo facto de o imóvel se situar entroncado no núcleo urbano, com construções muito próximas.
Em qualquer caso, a Matriz de Torre de Dona Chama, para além do seu natural primeiro papel de templo católico destinado ao culto religioso, tem um interesse turístico relevante e potenciador do desenvolvimento local, se integrado estrategicamente com o demais património.


Vista geral do templo – Foto autor


Para quem o queira visitar, torna-se necessário perguntar, junto do Largo da Berroa e Pelourinho por quem detém as chaves, dado que se encontra fechado ao público, por a isso obrigarem as razões de segurança.


Lembram-se das Endoenças?


Só os mais velhos se recordarão da realização dos Autos da Paixão que a Torre de Dona Chama realizou nos anos cinquenta do século passado.
Mas, decerto, mesmo os mais novos terão ouvido falar das Endoenças e de um outro familiar ter nelas participado como figurante.






Se hoje seria difícil conceber uma produção desta natureza, com um palco gigante (montado no “Prado”, actual jardim e recinto de festas) e em que estiveram envolvidos centenas de figurantes, todos vestidos com traje de época, imagine-se a dificuldade que não foi realizar as Endoenças, nos meados do século passado!





Segundo a memória da minha mãe (Maria Augusta Mesquita) e outros, aqui fica a listagem de alguns participantes e personagens interpretadas:

Vitor Fortunato Pereira – “Jesus Cristo”

Maria Augusta Mesquita – “Nossa Senhora”

Mário Pires – “Judas”

Gilberto Bernardo – “Pilatos”

Norberto Carvalho – “Diabo”

Mário Serrano – “São João”

Libório SerranoRei Herodes

Florinda Teixeira – “Verónica”

Teresa Nozelos – “Madalena”

Mário Medeiros – “O Espia”

Ilda Pires, Hélia Pinheiro Alves e Ana Pinheiro Valente – 3 Marias

Ilídio Ferreira  Caifás

Viriato Felgueiras (Branco) – Anás

Carolino Serrano – Um dos ladrões




Muitos outros participaram mas, infelizmente, os registos da época, ou não existem, ou são de difícil acesso, valendo a memória (falível) dos poucos que ainda estão entre nós.
Todos eles foram dirigidos pelo Nuno Nozelos (que viria a escrever esse grande livro “Gente da Minha Terra”).
Dizem os que disso ainda têm memória que ficaram inesquecíveis, entre outros, os desempenhos da “Nossa Senhora”, de “Jesus Cristo” e do “Espia”, este sobretudo pela irreverência.






Aqui ficam algumas recordações das Endoenças realizadas nos anos cinquenta, em Torre de Dona Chama.
Quem sabe alguém pode contribuir para corrigir ou completar esta memória.